Deauville sans Trintignant # 01
Jules et Jim de François Truffaut (1962)
« Hitchcock et Truffaut nous entretient / nous avons tant de choses en commun ... »
Quando nos libertamos da inércia que nos mantem refém. Quando nos deixamos resgatar por um certo dandismo e de forma ágil perseguimos referências e ligações. Quando partimos à descoberta. Ao mergulharmos, um prazer contido suspende-nos. Por momentos esquecemos a vida e sentimo-nos mais vivos. E frustrados também. Por não termos escrito aquela frase. Por não os termos descoberto antes.
Nestes últimos tempos comprometi-me com o cinema francês. Não que tenha sido coagido a isso, pois então não retiraria daí qualquer prazer. Este compromisso surgiu de forma tácita, como pano de fundo para o imaginário francófono que construí ao longo do último ano. Como escutar Delerm sem ter presente a obra de Truffaut? Como não encontrar em Les vacances de Monsieur Hulot o cenário de Un èté sur la côte de Benjamin Biolay?
Como o cinéfilo que nunca espero vir a ser, eis apenas algumas impressões digitais do que vi, que dificilmente o tempo apagará. Discutíveis, espero. Mas ainda assim, intocáveis.
Do filme que acima já mencionei guardo a ingenuidade da personagem que Tati personifica: Monsieur Hulot. Quando o vemos pela primeira vez somos de imediato transportados para o imaginário de Chaplin e de Buster Keaton. Também Monsieur Hulot raramente fala, equilibrando-se sobre maneirismos e tiques que, de tão recorrentes, desenham a personalidade deste francês. A forma linear como caminha, a maneira educada como se apresenta perante os outros, o desconcerto dos seus gestos ... Imediatamente sentimos uma proximidade face a esta personagem, a mesma que sentimos face a Chaplin. Pelo facto de ser apenas naif, de ser apenas mais um tonto. E é este mesmo tonto que Tati mais tarde recoloca no cenário da França moderna, primeiro em Mon oncle e depois em Playtime. Apesar deste último ser considerado a sua obra prima, e admito que o seja, pelo facto de, em Playtime, Tati aperfeiçoar todos os processos que já vinha experimentando anteriormente, pelo facto de nos mostrar essa contradição entre o indivíduo e o colectivo, expresso na arquitectura fria e linear, onde tudo é função de tudo o resto, em que as convenções se sobrepõem ao improviso e a privacidade se perde nos transparentes, mas modernos edifícios, ainda assim prefiro Mon oncle... Porque a relação entre Hulot e o seu sobrinho vive dessa ingenuidade contagiante, porque o cenário da casa da irmã de Hulot é delirante na sua modernidade funcional, pelo varredor que nunca chega a varrer um monte de folhas ao longo de todo o filme ... Em Playtime, Tati deixa de lado qualquer narrativa. Em Playtime a forma como manipula o som é tremenda (alerta desta Joana, que me fez também "escutar" o filme ...). Enfim ... um Tati maior.
A foto deixa pouco a adivinhar. Jules et Jim como mote para descobrir Truffaut. Um daqueles filmes em que gostaríamos de ter um bloco de notas ao nosso lado, para apontar todas aquelas frases que desejávamos ter escrito. Um magnífico Oskar Werner. Uma desconcertante Jeanne Moreau. O encontro entre a literatura e o cinema. Truffaut visto à luz de Delerm, que se inspira nos seus filmes para criar as suas composições. A música de Georges Delerue, que nos conduz, imperceptível, durante Jules et Jim. A óbvia ligação a The dreamers de Bernardo Bertollucci, pela recuperação de um triângulo, no qual o amor e a amizade se sobrepõem, esgrimindo pela preponderância de cada um sobre o outro. Os sacrifícios. A ausência do outro. A quase obsessão pelo outro. Sob cenários que nos testam, que testam a capacidade de continuarmos com as nossas vidas, de nos comprometermos só a elas. No primeiro o período da Primeira Grande Guerra. No segundo o Maio de 68 em Paris. A personagem de Theo, interpretada por Louis Garrel, um Henri Serre imerso em silêncios ...
Le stade de Wimbledon de Mathieu Amalric. Um exercício poético. Um filme de procura contínua. Do passado de um outro e de nós mesmos. Disseram-me que me iria sentir bem por estar só, após o ver. Senti-me apenas menos inquieto. Um filme no qual nos cruzamos com o doce sorriso de Jeanne Balibar, que nos pacifica, que também escuto nos dias que correm, ela que tal como Irène Jacob, que encontramos em Rouge de Kieslowski, se aventurou na chanson française. O mesmo Mathieu Amalric que reaparece, como Irène Jacob de resto, em Kensington Square de Delerm.
Talvez o Godinho tenha mesmo razão ... Isto anda tudo ligado.